Artigo nº 14, 1990
RASHI interpreta o versículo que Jacó disse a José: “Faz para mim misericórdia e verdade”. Chésed [misericórdia/graça] que é feita com os mortos é verdadeira Chésed, pois a pessoa não espera uma recompensa em troca. Isto significa que quando ele lhe pediu o favor: “Por favor, não me enterres no Egito”, ele pediu que realizasse a verdadeira Chésed, sem recompensa. Devemos entender isso, pois o bom senso manda que se ele lhe pagasse pelo trabalho, certamente teria mais certeza de que faria isso por ele, pois é costume que quando queremos que algo seja feito na totalidade, paguemos um valor mais elevado. Então, por que escolheu ele o outro caminho, fazer o trabalho sem nenhum pagamento?
Ainda mais desconcertante, de acordo com as palavras de RASHI sobre o versículo: “E eu te dou-te um Shechem (Siquém) a mais do que aos teus irmãos” (Gênesis 48:22), RASHI interpreta “'Eu dou-se', já que tu te preocupas com o meu enterro , 'um Shechem a mais do que para os teus irmãos.' O verdadeiro Shechem será para ti uma porção a mais do que para os teus irmãos. Assim, isso contradiz a verdadeira Chésed, que significa sem qualquer pagamento, enquanto aqui ele lhe paga “um Shechem”, significando uma porção a mais do que a seus irmãos.
Devemos interpretar tudo isso no trabalho, que Jacó deu a entender a José a ordem do trabalho. Vemos que a ordem do trabalho que nos foi dada na Torá e Mitsvot [mandamentos/boas ações] também parece contraditória. Por um lado, vemos que os nossos sábios disseram que a razão para a criação dos mundos foi o Seu desejo de fazer o bem às Suas criações, ou seja, que as criaturas recebessem Dele o deleite e prazer, uma vez que o Criador está em completa plenitude e o a única razão pela qual Ele criou a criação foi para dar abundância aos seres criados, como está escrito (Midrash Rabá, Beresheet), “O Criador respondeu aos anjos quando quis criar o homem. Ele disse que é como um rei que tem uma torre cheia de abundância, mas não tem convidados. Que prazer isso dá? Segue-se que tudo aquilo que Ele criou foi para que as criaturas recebessem o deleite e prazer e sentissem a Sua orientação como bom e benevolente.
Por outro lado, vemos algo que é completamente oposto ao propósito da criação, o que significa que uma Tzimtzum [restrição] e ocultação foram colocadas, que é proibido receber para benefício pessoal. Pelo contrário, tudo o que recebemos deve ser pelo bem do Criador. Isso significa que nosso principal trabalho é trabalhar para Ele. Este é o significado das palavras: “Bendito é o nosso Deus, que nos criou para a Sua glória”. Isto é, toda a criação é apenas para a Sua glória e não para os seres criados. É por isso que recebemos 613 Mitsvot para observar.
Como disseram nossos sábios: “Eu criei a inclinação ao mal; Eu criei a Torá como tempero”, disse o Criador. Em outras palavras, uma pessoa não pode trabalhar pelo bem do Criador porque a inclinação do mal a obstrui. Portanto, o Criador nos deu 613 Mitsvot, que O Zohar chama “613 Eitin”(significando conselhos), pelos quais seremos capazes de trabalhar pelo bem do Criador.
Ostensivamente, isto é o completo oposto do propósito da criação – fazer o bem às Suas criações. A questão é que devemos acreditar no que o ARI diz: “Quando surgiu em Sua simples vontade de criar os mundos, emanar as emanações e trazer à luz a perfeição das Suas ações”. No Estudo das Dez Sefirot, no início do comentário Ohr Pnimi, ele explica ali que “perfeição das Suas ações” significa que o deleite e o prazer que Ele contemplou dar às criaturas, foi para que houvesse plenitude nelas, para que não sentissem vergonha ao receber o deleite e o prazer, isso é chamado “a perfeição das Suas acções”.
Segue-se que a Tzimtzum que ocorreu, onde a luz brilha somente quando as criaturas fazem tudo pelo bem do céu, para beneficiar o Criador, e que depois elas receberão o deleite e o prazer e não haverá vergonha, esta é a correção da Tzimtzum, onde devemos fazer tudo pelo bem do Criador e não por nós mesmos. Segue-se, portanto, que a única razão pela qual devemos trabalhar pelo bem do Criador é apenas para o nosso benefício pessoal. Com isso receberemos o completo deleite e prazer sem qualquer desagrado do pão da vergonha. Isso é chamado “trazer à luz a perfeição de Suas ações”, ou seja, a ação que Ele deseja fazer o bem às Suas criações será completada quando as criaturas receberem o deleite e o prazer.
Portanto, não há contradição entre o propósito da criação, fazer o bem às Suas criações, ou seja, que o objetivo é beneficiar os seres criados, e não que o Criador queira ser servido. Pelo contrário, é tudo para os seres criados e de forma alguma para o benefício do Criador, uma vez que Ele não tem uma deficiência. Além disso, Ele gostaria que os seres criados fossem tão felizes que se sentissem bem e não sentissem nenhum desconforto ao receberem o deleite e o prazer.
A regra é que quem come o pão da vergonha fica envergonhado. O Criador gostaria de salvá-los desta vergonha; portanto, Ele fez uma correção chamada “ Tzimtzum e ocultação”, onde enquanto eles não tiverem a correção de fazer tudo pelo bem do Criador, eles não poderão receber o deleite e o prazer porque esta ocultação foi colocada, de modo que depois, quando eles fizerem tudo pelo bem do Criador, o deleite e o prazer que eles querem receber e desfrutar será somente pelo bem do Criador, eles serão salvos da vergonha que está presente naquele que recebe sustento dos outros como uma oferta.
Segue-se do que foi dito acima, que não há contradição entre o propósito da criação de fazer o bem às Suas criações, ou seja, para o bem do ser criado, e a correção da criação, que devemos fazer tudo para o bem do Criador, e não para o nosso próprio bem, que é também para o bem dos seres criados e não que o Criador precise ser servido ou receber alguma coisa. Pelo contrário, tudo é para o bem dos seres criados.
Agora podemos explicar o que perguntamos: Por que Jacó disse a José para fazer por ele “verdadeira misericórdia”. Isto se refere à questão de que Jacó estabeleceu a ordem do trabalho que devemos fazer aqui. Ele deu-lhe a entender a ordem da correção da criação e a questão do propósito da criação, que são ambos uma só meta: beneficiar as criaturas.
Foi por isso que ele começou a dizer-lhe que devemos começar o trabalho numa forma de “verdadeira misericórdia”, ou seja, sem qualquer recompensa, que tudo não fosse para o seu próprio bem, mas pelo bem do Criador, como está escrito no livro Matan Torá (no início), que quando uma pessoa trabalha para o bem dos outros, também isso deve ser por causa do mandamento do Criador, que significa que tudo o que uma pessoa faz deve ser para o bem do Criador, e então ela naturalmente vai aderir ao Criador em tudo aquilo que faça.
Posteriormente, ele deu-lhe a entender que o fato de que devemos trabalhar pelo bem do Criador é para produzir benefício para si mesmo, o que significa que se uma pessoa realmente trabalha pelo bem do Criador e não quer nada para o seu benefício pessoal , ela chega a um ponto em que deseja dar alguma coisa ao Criador para que Ele desfrute. Nesse momento, ela vê que só há uma coisa pela qual ele pode agradar ao Criador – recebendo dele o deleite e prazer, pois foi por isso que Ele criou a criação. Portanto, ela quer deleitar o Criador. E certamente, quanto mais uma pessoa desfruta do presente do Rei, mais prazer o Rei tem.
Isso é semelhante a alguém dar um presente a um amigo. Normalmente, se quem recebe o presente elogia o presente que recebeu do seu amigo, o seu amigo desfruta mais com isso. Mas se quem recebe o presente lhe diz: “Eu não preciso realmente do presente que me deste”, o seu amigo não vai gostar disso. Pelo contrário, quanto mais o destinatário necessita do presente, mais o doador desfruta. Isto é expresso na medida de gratidão que aquele que recebe dá ao doador. Portanto, quanto mais uma pessoa tenta desfrutar do deleite e do prazer que o Criador lhe deu, mais contentamento existe no alto, por parte do inferior desfrutar mais.
Portanto, assim que José assumiu o trabalho de doar sem qualquer recompensa, ele deve receber o deleite e o prazer pelo que fez em prol de doar. É por isso que está escrito que Jacó lhe disse: “E eu te dou um Shechem a mais do que aos teus irmãos”. “Shechem” significa uma porção a mais do que aos seus irmãos, de acordo com a interpretação de RASHI, já que tu te incomodaste com o meu enterro, ou seja, pois então tu te encarregaste de trabalhar sem qualquer recompensa, agora chega a hora de receberes o pagamento, significando a parte da luz e abundância que deve ser revelada no trabalho em prol de doar, uma vez que o trabalho em prol de doar é principalmente para este propósito – ser capaz de receber o deleite e o prazer sem vergonha, como aquele que recebe uma oferta.
Em relação às palavras “um Shechem”, devemos interpretar da mesma forma que Baal HaSulam interpretou o que está escrito sobre o Rei Saul, que era “do seu Shechem [ombro] para cima, mais alto que todo o povo” (1 Samuel 9). O significado corpóreo é que ele era mais alto do que o resto das pessoas, o que significa que a sua cabeça era mais alta do que todas as pessoas. Ele disse que na espiritualidade, os graus se dividem em Rosh [cabeça] e Guf [corpo]. Guf significa que ainda não há plenitude nele, e Rosh significa que ela já tem totalidade.
Devemos interpretar que a plenitude significa que ele já foi recompensado com a correção da criação, chamada “vasos de doação”. Isto significa que com as ações dos vasos de doação, ele já consegue se direcionar para doar. Isto é considerado que ele foi recompensado com a luz de Chassadim [misericórdia], que se reveste em vasos de doação. Além disso, ele foi recompensado com o propósito de criação, que significa que ele consegue usar a recepção dos vasos em prol de doar. Isto é considerado que ele foi recompensado com a luz de Chochmá.
Segue-se que “do ombro para cima” significa que ele foi recompensado com a plenitude, chamada Rosh. Da mesma forma, devemos interpretar aquilo que Jacó disse a José: “E dou-te um Shechem a mais do que aos teus irmãos”. Isto é, ao aceitar o seu trabalho como verdadeira misericórdia, ou seja, sem pagamento, ele foi mais tarde recompensado com a plenitude de usar os vasos de recepção em prol de doar. Por outras palavras, ele recebeu duas coisas juntas: 1) a correção da criação, 2) o propósito da criação.
Segundo o acima exposto, devemos interpretar aquilo que está escrito na canção do Shabat [Sábado], “Aquele que santificar o Sétimo terá grande recompensa, de acordo com o seu trabalho”. Devemos entender qual é a novidade em dizer: “grande é a sua recompensa, segundo o seu trabalho”. No entanto, isto também se aplica ao mundo corpóreo: qualquer trabalhador recebe um salário de acordo com o tempo que trabalhou. Assim, onde está a novidade que ele vem para nos contar, que recebe recompensa de acordo com o seu trabalho? Ainda mais desconcertante é que devemos trabalhar para não receber recompensa, mas pelo bem do céu, ou seja, para beneficiar o Criador, e não para beneficiar a nós mesmos, então o que significa “sua recompensa é grande”?
Como foi dito acima, depois de uma pessoa ter trabalhado na correção da criação durante os seis dias de trabalho, em prol de doar e não para o seu benefício pessoal, segue-se que ela não trabalhou em prol de receber qualquer recompensa. Pelo contrário, foi tudo pelo bem do Criador. Segue-se que na medida em que ela não trabalhou para receber recompensa, quando chega o Shabat – que é uma “semelhança do mundo vindouro”, a conclusão do céu e da terra – ela recebe recompensa. Ou seja, ela utiliza os vasos de recepção e desfruta do deleite e do prazer que é o propósito da criação, pois agora ela consegue receber tudo em prol de doar.
Segue-se que se ela não desfruta, é como se o anfitrião desse comida a um convidado e tentasse fazer para ele uma torre cheia de abundância. Mas se o convidado disser ao anfitrião: “Não tive nenhum prazer com a tua refeição”, que contentamento terá o anfitrião? Assim, quanto mais o convidado desfruta da refeição, mais feliz fica o anfitrião.
Isto é como os nossos sábios disseram (Berachot 58), “Bom convidado, o que diz ele? 'Com que embaraços o anfitrião se incomodou por mim?! E tudo aquilo com que ele se preocupou, ele se preocupou somente por mim. 'Mas um mau convidado, o que diz ele? ‘Os problemas com que o anfitrião se preocupa são somente para a sua esposa e filhos.’”
Devemos interpretar o que é um bom convidado e um mau convidado no trabalho. Quando uma pessoa não corrigiu o seu mal, ou seja, a sua vontade de receber para seu próprio bem, ela está sob o governo do mal. Portanto, ela diz: “O fato do Criador nos ter dado a Torá e Mitsvot para observar é porque Ele precisa do nosso trabalho. Portanto, Ele nos ordenou que observássemos a Torá e Mitsvot. Em troca, Ele nos pagará.” Isto é, Ele não criou o mundo para fazer o bem às Suas criações. Em vez disso, dizem que Ele criou o mundo para Seu próprio bem.
Contudo, Ele quer que trabalhemos para Ele e, em troca, Ele nos pagará. Portanto, às vezes, o mau convidado diz: “Eu não quero trabalhar para Ele, ou seja, observar a Sua Torá e Mitsvot, e eu renuncio à recompensa.” Ele diz: “Nem eles”, referindo-se ao trabalho na Torá e Mitsvot, “nem sua recompensa”, da Torá e Mitsvot. Ou seja, esse trabalho que o Criador nos ordenou, que essa recompensa pelo trabalho não vale a pena.
Um bom convidado no trabalho é aquele que já corrigiu o mal e tem vasos de doação. Depois, ele é recompensado com o propósito da criação, ou seja, recebe o deleite e o prazer porque já corrigiu o mal. Então ele diz: “Tudo aquilo que o anfitrião se incomodou foi por mim”, e não que o Criador é o necessitado, que devamos trabalhar para Ele. Pelo contrário, trabalhar para Ele é para nosso benefício, para que possamos receber o deleite e o prazer e não sentir vergonha ao receber o prazer.
Mas um mau convidado, aquele que ainda está sob o governo do seu mal, que é o recebedor em prol de receber, diz exatamente o contrário, que (o Criador) fez tudo por Ele, e não pelo bem dos seres criados.
De acordo com o que foi dito acima, devemos interpretar misericórdia e verdade como duas coisas: 1) Chésed significa fazer tudo não pelo seu próprio bem, mas somente pelo bem do Criador. 2) “Verdade” significa que então seremos recompensados com ver a verdade, que a razão para a criação dos mundos com todas as correções é somente para o bem das criaturas, para que elas recebam o deleite e prazer. Mas antes de serem recompensados com Chésed, a verdade não é revelada - que a criação do mundo foi para fazer o bem às Suas criações.